Entre Marias e Clarices, quem já pisou na porta de uma casa de santo sabe: vivemos o tempo da grande distorção. O que era para ser caminho de silêncio, de fundação e de enraizamento, virou palco. Um espetáculo de vaidades, filtros e cifras.
O sacerdócio moderno não fala mais com os espíritos. Fala com a câmera.
Não prepara mais o obi, mas decora roteiro.
Não dança para o orixá — dança para o algoritmo.
Estamos cercados por sacerdotes que deixaram de ser guias para se tornarem CEOs da fé.
Dominam mais o Canva do que o culto, mais o Pix do que o poder.
Lembram menos um babalaô do Benin e mais um coach de Alphaville com colar de contas no pescoço.
A ancestralidade virou estética.
E a mediocridade, um modelo de negócio.
Os terreiros agora têm estacionamento para três carros importados. As “casas” viraram condomínios murados com áreas gourmet. E não, isso não é progresso.
Isso é desconexão.
Não é sobre querer que os antigos vivam na miséria — e sim sobre lembrar que eles nunca se venderam.
A avó benzedeira, o pai de santo da roça, a mulher que rezava em cima do formigueiro: nenhum deles cobrou R$ 2.000 para “abrir caminhos” via WhatsApp. Nenhum deles ensinou a “como fazer feitiço em três passos” no Instagram. Nenhum deles confundiu espiritualidade com empreendedorismo.
Jean Baudrillard já dizia: “O real não desaparece — ele é substituído por uma sucessão de simulações.”
É isso que vemos hoje: simulações de culto, simulações de saber, simulações de axé.
Gente que nunca raspou uma cabeça com fundamento ensinando iniciação.
Gente que nunca ouviu um oriki na boca de um ancião vendendo pacote de ancestralidade com direito a workshop e certificado.
E tudo isso é celebrado.
Não por ignorância apenas — mas por conveniência.
É mais fácil seguir um charlatão que agrada do que um sacerdote que corrige.
“Os poderosos mascarados da religião”, como disse Elias Canetti, já não se contentam em participar do baile: querem ser os donos da música.
E tocam o tambor conforme a vaidade manda.
Enquanto isso, vemos filhos de santo sendo explorados emocionalmente e financeiramente.
Vemos mulheres arruinadas em nome de Ebós que nunca foram feitos.
Vemos gente que queria cura e encontrou dívida.
O dinheiro não vem do orixá.
Não vem da espiritualidade.
Vem da manipulação, do desespero alheio, da incapacidade generalizada de discernir fé de fetiche.
E em casos mais graves, vem de coisas que só a polícia deveria investigar.
Nos bastidores dessa encenação, há abuso, crueldade, exploração sexual, dependência psicológica e redes bem estruturadas de estelionato.
É a religião como produto.
É a fé como moeda.
Se Mallarmé dizia que “tudo no mundo existe para terminar em um livro”, hoje, parece que tudo existe para terminar em um story patrocinado.
Talvez estejamos apenas vendo o esgotamento de um modelo que nunca entendeu a profundidade do culto.
Talvez estejamos colhendo os frutos de uma geração que não foi formada por PowerPoint, porém entendeu que este formato de manuais improvisados, de iniciações feitas em tempo recorde e com axé de segunda mão dão mais dinheiro.
E no meio disso tudo, resta uma pergunta simples:
quando foi que a espiritualidade virou entretenimento?
Quando foi que um culto que deveria ser voltado à ancestralidade — que é o que dizem, com a boca cheia, para defender as paredes do castelo de cartas que construíram: “Respeitem nossa ancestralidade! Respeitem nossa história!” — virou esse circo?
Sempre fazem analogia com o que os antigos faziam, mas quais foram, de fato, os nossos ancestrais que viveram em meio a tanta luxúria, enganação e desperdício?
É o fim.
Mín. 18° Máx. 27°
Mín. 18° Máx. 27°
Parcialmente nubladoMín. 18° Máx. 21°
Chuva